segunda-feira, outubro 30, 2006

Cinéma verité

Era a este artigo do Paulo Moura que eu me referia ontem.
Cinéma verité
É fácil ser espectador de ficção. Mas ali os temas eram outros e ninguém estava preparado. Mal me sentei no Grande Auditório da Culturgest, para uma maratona de filmes do Doclisboa, tive o primeiro choque com a realidade. Em letras garrafais no ecrã, antes de começar a sessão, lia-se "Benvindo ao doclisboa". Assim mesmo: "benvindo", e não "bem-vindo".
Pensei: será de propósito? Será um teste? Mas era tão inverosímil ser uma brincadeira como um grosseiro erro de ortografia.
Começou o filme. The Sky is My Ceiling, de Keja Ho Kramer. Imagens da cidade de São Paulo, em silêncio. Surgem legendas, em inglês, mas sem som. Mais legendas, descrevendo "o cenário fantástico de um conto de J. G. Ballard", como se lê no programa. Passados alguns minutos, uma mulher tem a coragem de dizer, voltando-se para trás: "O filme está sem som!" Burburinho. Mais um protesto. A imagem continua, com as legendas, sem som. Um homem bate palmas. Outro assobia. Muitas cabeças se voltam para trás, mas na cabine do projeccionista não se vê ninguém.
A plateia divide-se entre os que se sentem espertos por estarem a protestar e os que se sentem estúpidos por pertencerem à maioria conformista. Depois alguém anuncia: "Já fui perguntar. O filme é mesmo assim". E a plateia divide-se entre os que se sentem espertos por não terem dito nada e os que se sentem estúpidos por serem totalmente destituídos de capacidade para interpretar a arte.
O filme seguinte é dos aguardados com mais expectativa. Into the Great Silence, de Philip Groening, é um documentário único sobre o mosteiro da Grande Cartuxa, nos Alpes franceses. Quase três horas sobre a vida dos monges que fizeram voto de meditação e silêncio. Nem palavras, nem música, nem acção. Diz o programa: "O filme é uma aproximação austera à meditação silenciosa da vida monástica em forma pura".
O Grande Auditório está repleto. Todos sabem que não vai ser fácil, mas estão dispostos a sofrer para entrar numa realidade desconhecida. Passa a primeira, a segunda meia-hora. O filme está carregado de imagens belas e poderosas. Vemos os monges a rezarem no escuro, a comerem sozinhos, a rebolarem pela neve, brincando como crianças, enquanto as estrelas se deslocam no céu a uma velocidade irreal. Tudo é irreal neste pedaço de realidade que enche o ecrã... Enche? Não. A imagem começa a descer na tela, até vermos apenas os tectos e os cocurutos dos monges. Desce ainda mais e só vemos uma estreita faixa projectada. O resto da imagem está nas tábuas do palco ou mesmo nas nucas dos espectadores. Que se passa? Será mesmo assim? O projeccionista deixou cair o projector?
Começam os protestos. "Levanta o filme!", grita um. "Acorda!", guincha outro. E multiplicam-se os assobios, até que um homem lança um grito a plenos pulmões, um grito desesperado, como se contivesse a frustração de toda uma vida. Um berro descomunal que abafa todos os protestos, que enche a sala como um furacão de raiva, de revolta contra a incultura, a falta de respeito, a mesquinhez intelectual. Um brado terrível, provindo do fundo da alma: "CALEM-SE, MERDA!"
Calaram-se. Depois, alguém disse, entre dentes: "Não vês que o filme está a escorregar pelo ecrã abaixo, meu idiota?"
Acordando com a algazarra, o projeccionista lá endireitou a imagem e os monges prosseguiram na sua realidade. Os espectadores com mais imaginação seguiram o filme até ao fim.

8 Comments:

Blogger 125_azul said...

Há quem se divirta, que bom! Eu ando a trabalhar como uma mula, sem tempo nem para vir dar beijinhos, que inveja.
Semana feliz e have fun no feriado

outubro 30, 2006 11:28 da tarde  
Blogger MJ said...

Este comentário foi removido por um gestor do blogue.

outubro 31, 2006 8:54 da manhã  
Blogger MJ said...

Bom, muito bom! Vou ficar atenta aos artigos dele. São... incisivos!
Beijinhos

outubro 31, 2006 8:55 da manhã  
Blogger Nelson Reprezas said...

Ó Carlota, eu estava a apetecer-me perguntar à azulinha como é que trabalham as mulas, mas depois lembrei-me que o blogue é teu, não é dela. Assim, Carlota, faz-me um favor: Pergunta lá à azulinha como é que as mulas trabalham :)
Beijolas para ti

outubro 31, 2006 10:24 da manhã  
Blogger Carlota said...

Querida Azulinha, o Espumante gostava muito de saber como trabalham as mulas...
Podes responder-lhe, se souberes, se fazes favor, que ele hoje teve um ataque de timidez e precisou de porta-voz... :D

Ainda bem que gostaste, MJ!

Beijolas aos três!

outubro 31, 2006 10:36 da manhã  
Blogger Ana said...

Lindo, Carlota!
Eu por acaso também tenho ataques de nervos com aqueles que se riem altíssimo das piadas não traduzidas dos filmes, para demonstrar que sabem francês, inglês, etc., e com as pessoas que se riem antes das piadas...ou murmuram a deixa seguinte...tipo naqueles filmes clássicos, na cinemateca...Já te aconteceu apanhares pessoas assim, ou é o meu destino?
Beijinhos,
Margot

outubro 31, 2006 2:56 da tarde  
Blogger 125_azul said...

Vou lá responder ao Espumante já a correr, mas digo-te que as mulas trabalham de palas à volta dos olhos, enquanto giram para tirar água das noras; carregam sacadas no lombo e puxam arados. eu tenho andado lá perto. E pior, sem as palas!!!Beijinhos

novembro 01, 2006 12:49 da manhã  
Blogger Carlota said...

É o teu destino, Margot! :D
LOL!... A mim não me acontece porque não frequento esses antros de cultura! :))

De facto, Azulinhas, assim só te faltam as palas! ;D

Beijolas às duas.

novembro 02, 2006 10:54 da tarde  

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